sábado, junho 7

Vivemos num Mundo ao contrário? Ou do lado avesso do mundo?

São 6h da manhã. O sol já nasceu sem que fosse preciso despertá-lo. Aqui por detrás de um mundo que não avistamos o dia parece nem dormir. A rotina barulhenta das armas que disparam incessantes não nos descansa, não nos deixa fechar os olhos sem que tenhamos o receio de não os voltar a abrir. O rebanho já está preparado, embora não haja preparação. Eu sei que também as minhas ovelhas sentem a inquietação de quem não sabe o dia de amanhã. Noto-lhes a força como agora comem a erva, e o rebanho mantém-se cada vez mais próximo. Sim, também eles têm a premonição de que a qualquer instante uma arma nos extermine o sopro da vida.

Acordo mesmo que na noite anterior agora já dissipada pelo sol os meus olhos não tenham fechado. Ficaram vigilantes e atentos aos meus quatro filhos, ao meu lado aparentemente descansados, mas também eles, também eles por mais que lhes doa o sentimento de que a infância lhes foge por entre os dedos, sabem que a qualquer momento a minha cama poderá deixar e estar anexada à deles. Ser mãe foi como ter uma esperança de que as nossas gerações seriam salvas por estes guerrilheiros que sem armas calariam o país, estas crianças que se tornariam opositores a este regime sem estrutura disparatadamente abusivo e instaurassem as leis que deixassem o sol dormir mais um pouco.

Os homens chegaram. Levaram dois dos meus filhos. Deixaram as meninas com a ameaça certa de que ao meu terraço voltariam para as levar. Arrancaram-me a roupa. Penetraram-me sem dó, fui espancada por que gritava com lágrimas e porque me enojava com aquelas barbas que roçavam contra o meu peito. Pensava no meu marido, também ele se sentia obrigado a entrar nesta luta contra a vida e agora morto abandonou-nos nesta terra maldita. As minhas filhas viam a minha desgraça nas mãos de outros estranhos que violentamente me rasgavam os panos velhos envoltos no meu corpo. Choravam e gritavam uivos de dor, não as olhava directamente por vergonha, e ver aqueles animais chicoteá-las feria-me o coração e dilatava-me o ódio. Eles foram embora, foram-se e então olhei-as directamente. As minhas filhas, a razão pela qual eu aguentei tudo isto. Mas não aguento mais, não aguento vê-las abandonar a vida. Não suporto a ideia de que por dentro elas já estão mortas. Não sorriem. Talvez porque a fome não lhes deu consistência às bochechas. Desnutridas bebem das poças na ruas e eu, eu imito-as como cadelas sem dono nem água. A seca arrasou a nossa produção. Cultivamos milho mas agora a terra secou, também ela já se cansou de nos dar a esperança inexistente no futuro. Acabou. Vivemos na Republica democrática do Congo, aqui onde a nossa voz é abafada pelas granadas que explodem ao longe mas que soam tão perto dos nossos ouvidos que acabamos por ficar surdos. E pensar o palavreado democrático é traduzido pelo ruído ensurdecedor das vozes aclamadas destes homens impiedosos mas profundamente miseráveis. Gritam, batem, lutam mas na realidade só desejam a paz, só precisam de sentir que não há nada para lutar, não há rivalidades intransponíveis, não há bens que valham as mortes e as atrocidades que mancham esta espécie: o Homem. Pensam desesperados que mais um dia passou e pelo destino ou algo mais sobreviveram. Voltam para as suas casas receosos da paisagem que possam encontrar: as mulheres estendidas e perfeitamente receptivas ao último suspiro, os seus filhos ensanguentados e emagrecidos pelo excesso de miséria.

Anoiteceu. A lua cobre-nos a cabeça na incerteza de voltar a sorrir-nos amanhã. Elas adormeceram. A cidade permanece agora silenciosa, um silêncio medonho que assusta e que a qualquer momento pode ser irrompido por uma explosão. A neblina espalha-se deixando um rastro de sangue entranhado na calçada, sangue que não desaparece com a chuva que cai esporadicamente. Olho para os seus rostos, uma última vez, um pouco mais. Choro. Choro como uma criança que acorda de um pesadelo, choro veementemente por viver num dilema em que não vejo nenhuma saída. Ouço pela última vez a sua respiração. Não gritaram. Vendei-lhes os olhos para não verem o rosto que lhes tirou a vida. Vendei-me a mim própria para não ver o assassino que lhes tirou a vida. Lavei-as com a água que durante o dia procurei. Benzi-as e vestia-as com os últimos fatos comprados pelo meu marido. Abri uma vala e cobri-as com a terra onde nasci, cresci e irei morrer. Amanhã os homens voltarão mas não encontrarão os corpos. Amanhã não realizarão mais um negócio pagando-me uma moeda e levando-as à força para o destino da prostituição. Não, amanhã as minhas filhas já poderão descansar em paz, porque não poderão recordar o rosto ensanguentado da mãe que lhes tirou a vida. Agora vou vestir-me e lavar-me com a pouca água que sobrou, não para morrer com dignidade mas apenas porque no paraíso não quero envergonhar as minhas filhas.

Em Dezembro, a MSF tratou cinco mulheres e uma adolescente de 14 anos perto de Pweto que disseram ter sido estupradas por soldados do exército congolês. O problema pode estar subestimado devido ao medo e ao estigma (...)Um relatório publicado pela entidade em novembro do ano passado revelou que os índices de mortalidade em Kilwa são de 4.4 mortes para cada 10 mil pessoas entre crianças com menos de cinco anos de idade.


2 milhões de pessoas são traficadas todos os anos, a maioria são mulheres e raparigas;
Dezenas de Milhares de mulheres e crianças foram sujeitas a violações e violência sexual desde a crise no Darfur em 2003; Relatório Anual 2007 Amnistia Internacional

_________________________********************__________________________
São 8h da manhã. O despertador incomoda-me o ouvido e alerta-me para mais um dia. A terra das oportunidades, pensei eu enquanto tomava duche e massajava as costas. Hoje tenho 5 reuniões e um negócio que poderá render milhões... Visto-me apressado porque aqui tudo corre, ouço o barulho ensurdecedor dos carros que desvairados atravessam as ruas com a intenção de recuperarem os 5minutos que perderam no café.

Chego ao escritório e enfrento as reuniões com estofo. Sorrio de forma escancarada e suspiro em segredo. Finalizo negócios e o tempo acompanha-me. Almoço a dois quarteirões do escritório. Peço Hamburguer c/ batata frita na pressa de regressar novamente ao emprego, sorrio porque sei que os minutos a menos no almoço são seguidos da sobremesa milionária. Vejo os zeros à direita e sem pensar muito rebusco uma assinatura. O expediente acaba e atiro-me às ruas de New York: compras, convido uma amiga para jantar e terminamos num bar divertidos.

Aqui o tempo ultrapassa-nos mas rende-nos a comodidade. Não vemos crescer as rugas mas apreciamos o esforço académico reflectido numa conta bancária recheada. Tenho os minutos cronometrados com o ginásio, a ida ao supermercado, o novo filme que estreou no cinema e os jantares entre amigos. Aqui onde tudo acontece à velocidade da luz tento manter-me a par do que acontece para lá dos limites americanos. Sento-me na minha poltrona e vejo o noticiário: crimes, bolsa, finanças. A emissão interrompe para anunciar crimes internacionais; mães que matam os filhos em terras africanas e suicidam-se de seguida. Estará o mundo louco? Decido ligar à minha mãe e concordamos em passar o Natal juntos. Não entendo como uma progenitora pode matar os seus rebentos? Uma mãe nasce, cresce e morre por eles, mas nunca os mata.

O sol regressa e consigo traz a luz da manhã. Acordo. Leio o jornal. Tomo o café a correr e corro para o escritório. Aumento a minha conta e anoto as despesas. Compro um perfume e dou-o à minha secretária. Ela é uma mulher incrível. Permaneço na indecisão de a convidar para jantar, mas reparo-lhe no decote e disparo a pergunta. Saímos e amamo-nos. Ela deseja-me e eu respondo-lhe com beijos e carícias. Adormecemos a contemplar a lua. Não sei se ela é a mulher da minha vida, mas agora quero assegurar a minha estabilidade financeira. Quero ter filhos e dar-lhes uma vida segura e cómoda. Regresso aos lençóis macios da minha cama amanhã o dia será igual, talvez até a convide novamente para sair...

Segundo o relatório da ONU, 80% da renda mundial está nas mãos de 1 bilião de pessoas que vivem nos países desenvolvidos e apenas 20% destinados a 5 biliões de pessoas nos países em desenvolvimento.

Nos Estados Unidos, os números indicam que as famílias desperdiçam cerca de meio quilo de comida por dia, o que equivalem média a 40% dos alimentos.Na Grã-Bretanha, o desperdício é estimado entre 30% e 40%.“Comida é água.

Escrevo-vos agora na 1º pessoa sem truques de personagens, aqui estou apenas eu, autora deste blog e afecta aos vossos comentários. Escrevi este post porque como em todos os outros procurei reconhecer-me numa dimensão que não a minha. Pensar que a realidade em que vivemos vai para além da vida banal que levamos doí. Doí terrivelmente, uma dor incessante que se desmancha em lágrimas perdidas e incapacitadas. Não por caridade, não por solidariedade mas conscializar-me que estas histórias existem muito para lá da ficção desta janela provoca-me sofrimento. Um sofrimento dorido e profundamente egoísta, porque eu continuo aqui. Permaneço sentada na minha cadeira e apenas escrevo, escrevo mesmo sem saber que não ajudo nem nada faço para contribuir contra um mundo que não dominamos. Irrita-me ver esta realidade marginalizada e completamente indiferente aos olhos da Terra, assisto pela TV porque tenho medo de me atirar a dimensões estranhas, macabras e aterrorizadoras. Irrita-me a minha forma de agir como se nada fosse. Choro por vergonha destas pessoas. Vivemos num Mundo ao contrário? Ou do lado avesso do mundo? Não sei. Eu vivo do lado do mundo que sorri satiricamente, ri-se de nós, pobres tolos que inválidos continuamos agarrados a uma comodidade que não conseguimos largar porque o próprio mundo nos habituou assim. Não sobreviveria num país como o Congo, não pela fome, não pela violência, mas pela miséria de espírito, pelos gritos mudos que não poderiam soar por se sentirem reprimidos ao gatilho mais próximo. Sim eu sei, eu sei que todos somos vitimas desta comodidade que nos engana e fecha os olhos e os ouvidos a estes gritos. Por isso escrevo, e muito mais escreveria se me pedissem, escrevo porque me envergonho de continuar na minha cadeira, mas enquanto puder e sentir que sou mais uma escreverei, escreverei até cansar os dedos.

3 comentários:

simples-mente disse...

Muito bom o texto.. aliás.. como todos os outros..
Deixa-nos uma ponta de triteza nos lábios e uma lagrima no canto do olho.. e alguma vergonha também.. porque tal como tu continuamos sentados na cadeira a escrever..

beijo*

psique disse...

Da tua cadeira, fizeste o pouco que está ao teu alcance, tentaste sentir o que essas pessoas que nos estão tão distantes - não só em km como em espirito - sentem. É triste, mas ao dizer é triste já me estou a distanciar deles, já me ponho num lugar à parte, num país também ele miseravel só que pelos motivos opostos ao Congo. Enquanto em África se procura a satisfação de necessidades básicas, nós procuramos um novo filme no cinema mais próximo, enquanto eles morrem, nós comemos e deitamos fora. Como mudar o mundo? Sentados na cadeira não o faremos; será que algum dia vamos ter coragem de abandonar a cadeira? Eu sempre quiz ir a Angola, a minha familia morou lá, sinto uma ligação, mas pergunto-me que reacção será a minha? O que faria eu perante aquela vastidão de miseria? Passaria ao lado, derramava uma lágrima e seguia? Não quero ser essa pessoa, e não sei por onde evoluir, por quem me hei-de trocar. O mundo é tão vasto, de New York ao Congo, de Portugal às ex-colónias, e eu sou só uma, sozinha nos meus pensamentos, também eu numa cadeira, também eu triste com uma lágrima ao canto, também eu desejosa de mudar o mundo, sem coragem de o enfrentar, aquela parte que me falta, os paises sub desenvolvidos.

Amei D :)

beijo
gosto de ti *

Leo Zelada disse...

Muy interesante tu blog.

Un beso de un poeta en Madrid.