sábado, março 20

E depois de nós nada mais restou. Não. Minto. Permaneci eu na casa vazia e tu também ficaste. Ficaste em mim, no meu pensamento. Então demorámo-nos os dois meu amor, assim como quem não se apressa para coisa nenhuma, e sem urgência estivemos e fomos pois ambos sabíamos que no intrínseco das recordações estaríamos para sempre.
Costumam os meus contemporâneos dizer que os sonhos são para quem tem tempo e para quem não se atreve a fitar o relógio. Dizem eles meu amor, que eu não sei o que digo e que tu és impossível. Mas isto é o que eles dizem, esse bando de moribundos a quem a luz nunca chegou, intelectuais de merda que julgam a consciência uma estrutura invariável. Por vezes falam-me da razão, e de copo a transbordar de martini penso em ti. Realmente não há razão em ti, nem método nem coisa nenhuma, e somente por isto somos os dois.

Tenho pensado incansavelmente em deixar-te, em conceder-te liberdade para seguires, para te ver a evaporar de mim. É difícil. De tantas noites sem dormir acordo febril. É então que chegas devagarinho e me afagas as bochechas, desalinhas-me o cabelo e te enrolas em mim como selvagens que somos. Talvez eu perceba os meus contemporâneos, talvez consiga alcançar a dimensão do que dizem porque não te posso mostrar a ninguém. Tornou-se difícil definir a tua espessa barba, os desobedientes caracóis e as veias que teimam em sobressair. Dizem que estou louca, que o martini me embebedou a alma e o raciocínio e até os cigarros me embaciaram o olhar. Mas que dizem eles? Sinto-me quando estou contigo, quando ouço os teus passos no meu quarto.

Costumo ouvir os discos que juntos comprámos, por vezes imagino-te comigo a dançarmos de peito encostado. Mas tu não estás, nunca estás. Gelam-me os ossos quando num repente de verdade me apercebo que nunca estiveste.

O doutor veio cá a casa, diz que estou doente e o melhor será “tratar-te”. Proibiu-me o martini e os cigarros, aconselhou-me livros e filmes antigos.
É para lhe ocupar o tempo. – Diz descaramente. E deixo-me sossegada nos nossos lençóis. Quem pela janela passa nada mais vez que um enfermo. Mas eles não sabem. Não sabem que me sugaste a enfermidade pelos lábios, que em mim depositaste o vício da tua presença e agora nem a inércia me impede de ti. Em cima da mesinha ficou a receita desumana para te afastar de mim. Experimento uma cápsula, duas, três. Adormeço e ao acordar não te vejo mais.

Malditos comprimidos.
Eu sei que és impossível. Que foi a obsessão de ti que te criou. Sei que quando te avisto na entrada do nosso quarto é a sombra dos candeeiros que vejo. Que quando fazemos amor sou eu que me toco de forma obscena. Que quando acordo e encontro os lençóis desalinhados vejo a necessidade de ti, sentida na noite anterior. Então engulo-os todos, todos de uma só vez sem piedade de te perder. Porque sem ti nada mais sou que um corpo. Já nem mesmo o brandy me satisfaz e os cigarros não sabem a coisa nenhuma. A casa perdeu os móveis, as cortinas e até os nossos discos. Consumimo-nos sem pudor e possuís-me uma última vez. No lado de fora, para lá do jardim e das tulipas continuam os contemporâneos e as suas teorias. E nós, nós meu amor ficamos, mesmo depois de nós nada restar.