Esta casa não tem aquecimento... mas rapidamente habituar-me-ia ao chão frio, em troca adormeceria com as luzes da cidade a embalarem-me o sono e a preencherem-me o olhar. Por vezes permanecia horas intermináveis a contemplar aqueles livrinhos dos turistas com as zonas mais belas da cidade, e é ridicularmente estúpido que lá não coloquem a fotografia dos pirilampos que reflectem no rio, é absurdo que não consigam ver a beleza imensa da luzinhas que abrilhantam as águas doces do rio. Realmente a electricidade era uma coisa fantástica. O Thomas Edison devia ter ficado apaixonado pela sua invenção. Eu fiquei. Felizmente que não tenho tomadas nem interruptores na minha casa nova, assim as luzes permanecem acesas ao longo da noite.
Lembrava-me incessantemente da minha mãe porque não queria recordar que sou pai, lembrava-me dos seus cabelos porque o rosto já se apresentava disfocado, e esquecia-me dos meus filhos porque não conseguia apagar os seus rostos da minha memória. Não tinha revolta, nem dor, no fundo eu fingia que os compreendia para não os ter que desprezar. E mesmo com a desilusão contida nos olhos, as portas da minha casa estavam abertas. Mas eu sabia que eles nunca viriam, e por isso mesmo nunca as fechava. Provavelmente nem recoradar-se-iam do dia de hoje, o dia do meu aniversário. Ofereci-me a mim mesmo uma nova cama, não muito quente mas resistente ao meu corpo, e a D.Rosa, uma vizinha deu- me os lençois. A minha primeira vizinha e de certo uma amiga. Jantámos juntos, uma refeição leve, a idade não perdoa e a minha dispensa ainda está em défice mas assim que puder já lhe prometi um desses jantares que ninguém sabe o que é, apenas lhe dão um nome. Ela mostrou-se ofendida, é uma mulher talhada na terra, gosta do que é bom e do que enche a barriga, portanto concordámos que seria um cozido à portuguesa, um prato da nossa terra, com o sabor tradicional e com cheiro de enfartar.
Uma personagem contraditória a D.Rosa; disse-me que mudara de casa há muitos anos e que já se habitou a viver sem móveis, enpertigava-se para se mostrar uma adepta ferranha do comunismo, injuriava o capitalismo porque sabia que não fazia parte dele, mas no fim das suas exclamações exaltadas, acalmava-se e adormecia com a sua menina na mão, como lhe chamava. Entregara-se ao vinho porque a cerveja era cara e fazia barriga, mas quando podia não se negava a uma branquinha. Fiquei sentado a olhar de sombreira para ela: invejava-lhe a energia, mas compadecia-me com a tristeza desenhada na suas rugas, uma boa senhora a D.Rosa.
Olhei de novo o rio, e já tomado pela inércia, estendi-me sobre a minha nova cama. Pensei incomodado nos meus filhos, provavelmente estariam a divertir-se numa festa da empresa onde constatemente subiam de posto à custa da bajulação do chefe, um acto asqueroso que me empurrou para fora dos limites das suas vidas. Ser o vice-presidente ou outro cargo com acentuação própria não pedia um pai aleijado e pobre, pressupunha apenas um bom fato com a ganância na lapela... Agora também já nada tinha importância. Deitei-me ao lado da D.Rosa que coitada se esqueceu-se de fechar a sua menina de cor avinhada. Ficámos os dois sujeitos à hipotermia mas ricos de luz, com a corrente eléctrica sobre as nossas cabeças que não nos deixava temer o escuro. Fechei os olhos e pensei na minha nova casa: sem móveis e apenas com uma cama de papelão mas agora com uns lençois de jornal, a minha única prenda de anos com direito a uma amiga que tinha a certeza que seria para toda a vida. Era bom morar na minha nova casa, pensei eu isento de sanidade.
2 comentários:
ESPETACULO!
fogo!tens um jeitinho!! lol nunca pensei...=) serio continua porque inda vais longe linda!
PARABÉNS!*
Tenho que concordar cm a liliana, ta qualquer coisa andreia :)
ADOREI!
Beijinhos
Filipa
Postar um comentário