Ainda te olho. Ainda te olho com a mesma tristeza nos olhos e o sorriso terno de quem nunca te esqueceu. Ainda tenho o teu retrato sobre a minha mesinha, e cada vez mais o admiro e sinto tristeza. Sinto uma tristeza profunda que soa a saudade e cheira a vida. Talvez não saiba perceber o odor da vida, mas se a vitalidade se resume num misto de aromas indecifráveis ao olfacto, então a vida mora em ti, ali pousada sobre a mesinha.
Ver-te num formato pequeno e protegido por uma superfície acrílica é uma afronta. É uma afronta para ti e para a tua grandeza, é uma afronta para mim que não me canso de te imaginar, o que já em si se torna outra afronta pois os limites da minha imaginação não alcançam o teu tamanho. Mas faço questão de te poder ver, mesmo que o teu retrato ainda a preto e branco camufle intencionalmente as tuas cores. Quem chega não consegue imaginar o teu perfume, os teus contornos, a tua capacidade de receber e hospedar, tal como me hospedaste quando nos encontrámos pela 1ºvez, tal como me recebeste de braços abertos sem impores condições a uma vida que se iniciava e que para meu desgosto, e ainda inconformismo terminou. Não sei se um dia te poderei voltar a ver, mas continuarei a olhar-te de frente, continuarei sentado no meu cadeirão tentando perceber porque o fizeram, porque me afastaram de ti que sempre te amei incondicionalmente, e ainda hoje amo.
Aqui sentado tento descrever-te em poemas tolos e dispersos, mas não sei se por coincidência ou ironia a caneta vai perdendo cor, e as palavras ainda não preencheram o bloco, e em cada uma das minhas rugas tu estás presente... As lembranças infinitas rodopiam e dançam no meu cérebro, fico estonteado de recordar os anos, que para mim parecem ter sido poucos, em que me acolhias, cada noite de uma derrota, cada tarde pintada com uma vitória, cada luta e cada batalha que tão veementemente defendi. Talvez um dia, quando as minhas rugas pararem de se atropelar em redor dos meus olhos e as minhas pernas permitirem que te visite, eu prometo que mesmo depois da expulsão de terceiros eu voltarei a ti. Mesmo depois das injustiças da guerra eu voltarei para cumprir o meu último desejo: ver-te a cores e deixar-me inundar com a visão infinita de ti, minha querida Terra Natal.
Porque todas as histórias têm um motivo e um pouco do meu mundo, esta significa algumas das sombras que preenchem os relatos diários de pessoas que deixaram o lugar que as viu nascer, por motivos que aqui parecem irrelevantes. E porque acredito que o amor vai muito além de corpos aqui posto sem compaixão vidas que se perderam geograficamente mas que ainda hoje permanecem vivas. Dedico-o a todos os que ainda se perdem com retratos e deixam que a semente continue plantada, ainda em vias de ser colhida.