sábado, fevereiro 16

Dependente da minha independência



- O que achas que é preciso para ter um casamento feliz?

- Ter uma memória curta. - Disse-me ele, com o ar carinhoso com que sempre me ouvia.

- Então porque te casas-te?

- Não me lembro. - Ficámos assim, penetrados no silêncio. Olhavamo-nos e sorriamos juntos. O meu pai era assim, tolerante e directo. E eu, eu era apenas a sua menina, a menina que queria ser independente.



********

- Queres casar comigo?
- Porquê?
- Porque quero que faças parte da minha vida, porque quero-te dentro dela.
- Hum, mas tu não consegues ser casado?
- Como não? Já o fui duas vezes! Não falo de ser fiel. Sabes, o meu médico disse-me que estou incapacitado de ser fiel. Mas quero-te a acordar comigo. Não te posso prometer fidelidade.
- Que diagnóstico tão conveniente. Eu aceito. Não espero a tua fideliadade mas juras-me lealdade?
- A ti? Sempre.


Casar-me com um pintor comunista não prometia uma vida tranquila mas assegurava-me personalidade. Ser artista era ser de cada modelo, era não ser fiel a só uma mulher, era amar tudo e com a mesma força. Por isso me apaixonei por ele, pelo que era, pela franqueza de me ser leal e pela coragem de mesmo assim querer acordar comigo. O que mais admirava naquele homem de ideais convictos era a capaciadade de ser realista, de me criticar sem rodeios, de ver beleza nas minhas imperfeições e assim fazer de mim perfeita.
Durante 8 anos mesmo infiel, o meu comunista foi-me leal. Apoiou-me e fui pintando, em cada pincelada marcava o que tão dificilmente me custava admitir. Sabia da sua mania de amar tudo de ver o sexo apenas como algo humano, sem amor, só toque. A tinta rosa soava a vermelhão, a amarela em laranja carregada e fui tornando os meus quadros num puzzle de turbilhões de sentimentos contrários, fui crescendo com tintas e pincéis. Também tinha os meus romances passageiros, envolvi-me com mulheres e com homens, mas somente à noite me satisfazia, tinha-o comigo, dentro de mim e isso fazia sentir-me segura. A sua fama cresceu, as traições aumentaram e a lealdade outrora inquebrável, quebrou. Encontrei-o no seu atlier, nu e com a carne suada como um porco num dia de romaria, por cima de uma mulher, provavelmente outra dessas rameiras com quem costumava dormir. Mas as probabilidades valem por serem imprevisíveis e aquele rosto tão familiar, resultou na dura constatação da traiçaõ da minha irmã e na desleadade do homem da minha vida. Afastámo-nos. Ele conseguiu fama e eu fui reconhecida noutros países. Tive tantos casos mas a ausência daquele pintor infiel e aporcalhado não se apagava. Fui presa por pensarem estar ligada aos ideais comunistas do meu marido e as dores aumentaram. Perdera um filho aos bocados, perdera a minha mãe mas não conseguia parar de pintar. Mesmo salva por ele da cela gelada que aprisionava os conspiradores, continuei sofrida, o meu corpo estava gradualmente a perder as forças. Continei a ter sessões intermináveis com o médico, endireitar a ferros a coluna, a tentar estar direita, engessada e destroçada continuei.
Uma tarde como outra qualquer, numa das muitas sessões inacabáveis com o doutor, descobri mais uma doença, a qual levou a que me retirassem dois dedos do pé. "Porquê ter pés se tenho asas para me fazer voar". Foi então que ele apareceu, implorando para voltar a acordar comigo, na mesma ou noutra cama qualquer. Fiquei cada vez mais doente, até que surgiu a oportunidade de expor os meus quadros no meu país, o sabor dos dias quentes e as pessoas alegres iam finalmente poder identificar-se com o que pintava nos meus quadros. Pintava a minha dor, pintava a impossibilidade de ter limites, pintava a minha vida, o meu amor, e a minha dor. O meu marido dizia-me que era maravilhoso o que eu pintava, pois abstraía-me do mundo de fora para pintar o que me surgia do coração. Sim, auto-retratava-me sem rodeios, pintava-me e compreendia-me. Talvez por isso aprendi a ser eu. Aprendi a conhecer-me, sem ter de em comparar com os outros, aprendi que não pintar sonhos faz com que aprenda a tolerar-me, e ainda assim a ser feliz. Ele continuou ali, infiel mas leal, a olhar com doçura as minhas imperfeições e mesmo doente a dividir a vida que ainda tinha em mim. Impediu-me com a conivência do médico de ir à minha própria exposição, com a desculpa de não poder sair da cama. Mas fui, vi a minha exposição ao compasso das sinceras e críticas palavras do meu marido...
Adoeçi mais e mais, mas mesmo assim continuei a expressar a minha doença e a minha felicidade por ainda o ter. De repente tudo acabou, os meus olhos fecharam-se em permanente comtemplação daquele rosto de artista insento de hipocrisia. Consegui ser independente de mim e felizmente dependente dele.






NOTA: Esta estória foi completemente baseada no magnífico filme "Frida", da pintora mexicana Frida Kahlo, o qual eu aconselho todos a verem. Uma estória que nos deixa ser seduzidos pelo amor, a coragem e as cores quentes do México.

5 comentários:

Marisa disse...

Gostei muito o teu texto tal como gostei do filme. Já o vi à algum tempo e achei interessante teres escrito isto com base nessa história :)

Gostei do blog!

T. Geiroto Marcelino disse...

Olá Dê!

Gostei muito deste texto, sabes? E também gostei de ler os que ainda não tinha lido, porque há muito tempo que não venho à net...

Mas este é especialmente bonito, foi uma maneira muito original de escrever algo "sobre" um filme tão especial. E tu sabes fazê-lo assim melhor do que ninguém.

Aproveito para te dizer que deixei uma resposta ao teu comentário ao meu último post, por isso se quiseres ir lá ver...

bjo

Tânia

Rafeiro Perfumado disse...

Então um dia, quando fores à Cidade do México, tens de passar pela casa da Frida. É uma experiência inesquecível..

Cláudia Pinto disse...

Olá Andreia,

Muito obrigada pelo teu comentário. Se algum dia te poder aconselhar relativamente ao mundo do jornalismo, estás à vontade (se é que os meus conselhos são úteis). Gostei muito da tua estreia no meu blog e espero ver-te mais periodicamente. Vou também tentar aparecer mais vezes no teu e criar um ponto de partida periódico, tal como faço com a Marisa.

Beijinhos para ti,

Cláudia Pinto

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado