domingo, outubro 19
quarta-feira, outubro 8
Esperanças velozes
A estação estava a meio gás. Poderia ao julgar-se pelo numero de transeuntes que rodopiavam sobre os bancos envelhecidos de madeira, que o relógio apontava seis horas da manhã. O nevoeiro, tanto de singelo como de tímido, florescia entre as nuvens cinzentas que se dispersavam no céu azul adivinhando tempestade. Não soube ao certo se pelo frio ou pela discreta desorientação, deixei-me cair num desses bancos, envolta nos pedaços quentes do meu casaco de algodão, e ali fiquei a apreciar quem passava e quem se esquecia de passar, quem olhava exasperado para o relógio, ou ainda outros como eu, que nem por ele davam conta.
Se havia um dado motivo para a minha presença neste lugar, esse era-me completamente desconhecido. Dei por mim a recordar a companheira da noite anterior, e sem memórias da dita cuja mas não pronunciada, perdi-me em tontos devaneios. Estava ali, mesmo que sem aparente motivo.
Ouviram-se os carris a chiar sobre a linha de ferro, e automaticamente os poucos futuros passageiros aproximavam-se da linha amarela, a mesma que os avisa e alerta do limite da espera. A carruagem 33 escancarou uma das suas portas diante de mim, e como se pudesse expressar um convite mostrou-me num espaço entreaberto um lugar cativo justo à janela. Conseguia sentir o odor quente dos corpos, podia até inalar o cheiro do chocolate quente do mais jovem casal apaixonado; e no entanto, todos aqueles elementos apelativos determinaram a minha posição estática. Permaneci em silêncio, quieta, perfeitamente desumana com se de um robô se tratasse, e vi-os. vi-os todos a colocar um pé à frente do outro, a pisarem o chão cor de prata do comboio, a recostarem-se nos bancos estufados. Nada daquilo me teria despertado qualquer tipo de interesse, não fosse um senhor de idade, meio calvo, meio careca, de óculos de lua cheia e olhos de quem olha por dentro sem reparar no que o reveste por fora, a benzer-se diante daquela porta cor de vinho.
Ouviram-se os três bips, o comboio partia e com ele levava as esperanças daqueles que nele as depositaram. Quando vi as portas que se fechavam como celas sem saídas, e percebi pelo rastro de vento que resfriou a minha cara, que o comboio já só se deixava avistar ao longe, percebi que aquele homem, sem grande contagem de novas primaveras, se preparava para mais uma batalha contra si próprio, contra a linha da sua vida que lhe preparava um novo susto. Perfeitamente igual a tantos outros, sobretudo para mim, aquele ser agarrou-se dificilmente às barras laterais da portinha cor de hortelã, e nem sei em que tempo isto aconteceu, mas foi como se aquele gesto de movimentos bruscos falasse e me dissesse que mais uma barreira tinha sido trespassada. Todas aquelas carruagens que por mim passavam e me confundiam o olhar, deixando-me cega por tanto movimento, representavam ciclos contínuas da minha vida imatura e crua. Não pelos poucos anos da minha existência, mas simplesmente pelo facto de nunca os ter entendido no seu todo. Olhei para as minhas mãos, e se pudesse, se pudesse teria tocado em todo aquele fervor, em todas as emoções expressas naqueles bocados de ferro, e teria entendido o quão o toque significa para mim. Porque me ceguei de tanta energia e ainda assim conseguia tocar nos meus olhos vidrados num vício sem fim, podia tocar a pele fria da minha cara e compreender o vento em todos os seus sentidos, e poderia tocar em todas as formas sem nome mesmo sem lhes poder avistar a cor. E quando me toquei, e num ímpeto de nova luz para os meus olhos entendi que as minhas esperanças não se deixaram fisgar pelas carruagens que corriam, aí sim compreendi que elas tinham simplesmente nascido.
Estranha passageira.
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