segunda-feira, junho 28

A Revolta dos Ignorantes

A casa estava em sossego quando tudo aconteceu. Ao fim da persistente demora para adormecer, Olga, a jovem menina que vivia para lá da sua realidade, foi incomodada por um ruído insuportável. Meio a contragosto, levantou-se devagar e na esperança de averiguar as possíveis causas do ensurdecedor barulho, colocou as chinelas e arrastou-se até à cozinha. Nenhum sinal. Passou a pente fino os quartos, as WC, a sala de jantar e até a dispensa, mas inexplicavelmente não encontrou as fontes responsáveis pelo seu despertar. Sem aviso prévio, os ruídos terminaram. Acendeu um reles cigarro, e de cara postada na janela entreteveu-se com os carros que circulavam na avenida. Poucos dias atrás o assalto da revelação disparatada havia desencadeado tremendas alterações em todos os ínfimos pormenores da sua existência. Com um trabalho idiota e uma vida banal, Olga, apercebera-se de que em todas as horas gastas não havia recolhido qualquer recompensa. E isto não significa necessariamente não ter obtido os lucros correspondentes ao turno que fazia na papelaria, muito pelo contrário. A fadiga subiu-lhe à cabeça, desceu pelo corpo e desconfortou a alma. O mal estava feito, já nada poderia restabelecer aquele desconforto interior que havia causado uma autêntica catástrofe. Apesar dos chinelos cor de salmão, do pijama de flanela e a expressão apática de quem não reage, dentro dela avinhava-se uma revolução.
Talvez fossem apenas alucinações - concluiu. Ela tivera a triste sina de se diagnosticar, e num fatídico auto-exame, a realidade de ser doente deixara-a inconsolável. Não, este não é o grande problema, porque no desconsolo ainda há movimento, aparentemente ela perdera-os todos. Crente da sua inutilidade, na busca por coisa nenhuma, nos factos evidentes de que a sua existência não possuía quaisquer indícios, Olga deixou-se acometer pela estranha sensação de já estar morta. Descobriu, entre os lunáticos pensamentos, que sofria da doença terrífica que não pressupõe cuidados médicos, ainda que o ópio pudesse ser uma possível cura. Mas ela sabia que seria impossível haver cura, que nem todas as drogas a fariam estar eternamente livre do peso de existir sem viver.
- Não há sinais de esforço. Ela não se debateu, ela simplesmente deixou-se ficar. Ali, sentada. - Afirmou o responsável admitido para o caso de uma morte ocasional, num estreito apartamento do subúrbio.
- Sim, o suicídio não parece ter sido violento. Ela sentou-se, e num só trago engoliu todos os comprimidos. Ao que tudo indica, a vítima embebedou-se, e só então recebeu a coragem que precisava. Que triste, uma menina. Vasculhou-se o local, a beata estava morta no canto da janela, e em frente do corpo débil encontraram um pequeno caderno com alguns dizeres. Podia então ler-se:
Estou cansada de pensar, pensar no que seria e não aceitar o que é. Estou farta de romances de suspense e acções literárias que não se adivinham. Exausta de coisas descobertas e ainda assim nada me satisfaz. Permaneço nesta dormência crónica de escrever por pensamentos e não os fazer viver pelos registos. Eu quero escrever, muito mesmo. E, não imagino um outro destino que não este. Na realidade escrevo todos os dias, nos momentos em que cogito, ou seja, a todo o instante. Todavia não consigo passar disto, do pensamento. Então não descanso, porque não possuo o botão off da mente, e pela caneta pode sempre secar a tinta. Mas não consigo ou não quero, porque a validade está nos actos e não nas intenções. E sinto-me aterrorizada por, talvez, nunca conseguir... porque permito que a banalidade dos dias ultrapasse as ideias sonhadas. Enquanto me distraio com a vida prática não me demoro com a pureza dos pensamentos alienados. Porque, a bem ver, eu vejo-me ali, sentada só, em permanentes confrontos com o deserto branco da folha, ou mais correctamente, com o ecrã limpo do computador. Imagino-me em esforço alargado para produzir, a viver na pressão inimaginável de quem quer ser mais sendo e não apenas desejando. Poderá a inércia fazer de mim um mero resto de tudo isto? é indecente, mas fora de ilusões quero ser muito mais que o senhor que se senta do meu lado no BUS, quero ser uma inspiração e não somente uma memória particular de alguém, mesmo que isto de mim faça um ser isolado. É megalómano, sim, mas é puro e não tão efémero quanto eu desejaria. (...)
No fim, os dois agentes presentes concordaram que seria apropriado levar o pequeno bloco vermelho para análise, o qual poderia constituir uma prova ou indicio de um possível crime e não apenas um simples suicídio. Incumbido da missão de encontrar o presumível culpado, o Inspector António Lopes, criminalista, levou a estória a sério, e sem descanso prosseguiu a leitura das páginas soltas, introduzidas pela pequena citação: "Poucos crêem, mas um dia hei-de mudar este sistema idiota. Um dia". Um pouco mais abaixo uma nova reflexão se iniciava, A aceitação é algo que não existe. E afirmo isto com o mesmo descaramento com que digo que vivemos em profunda revolta, que mesmo nas cedências, as atormentações e vontades reprimidas parecem dissimular a resignação. Sim, é verdade, sou dramática, exagerada, insatisfeita e, honestamente, até me enojam os pseudo-intelectuais, as pessoas demasiadamente complicadas... Vivo em plena aceitação, e isto não seria problemático se não tivesse a noção de que vivo camuflada. Porque não aceito, não posso. Mas a conformidade assim mo obriga, ou talvez não, talvez só me falte a coragem da revolução. A influência é algo soberbo, nocivo, débil. Bloqueia-nos tudo: os pensamentos, os gestos, os actos. Se pudesse escolher algo, decerto expurgaria este mal, a manipulação ilusória, isto que não é nada, de tanto que as pessoas não se apercebem. Muito gosto eu de falar das pessoas, as que isto
e as que aquilo, mas eu estou aqui, incluída neste grupo que não parece deixar-me. Na realidade, a Humanidade entristece-me, as pessoas deprimem-me. Então porque perco tanto tempo com estas lamentações idiotas? Possivelmente porque escondo o anseio de mudança, porque sei que não há nada que mais almeje do que transformar a Humanidade. E mesmo quando digo que sim, quando sorrio e confirmo a comunhão das realizações, mantenho escondido o desejo interior da revolta. Porque quero gritar que não, porque quero ter a coragem de dizer CHEGA. Mas depois num flash de conformismo a comodidade atrapalha-me e demoro-me mais um pouco nesta ilusória resignação. Isto não é difícil, nem complicado, nem coisa nenhuma. É somente doentio e obsessivo. Ah, então é isso, sou obcecada, doente. Incrivelmente ninguém vê. Estou aqui, como poderia estar em qualquer outro lugar, a doença assume repetidamente perante mim, normalmente sobre atormentações dolorosas. Porque a bem ver nada disto tem razão de ser. Pois a olho cru a sociedade ditou as regras, e entre o realismo e idealismo fico eu, com a mente confusa, com as ambições trocadas, ou simplesmente sem nada. É fácil saber-se o que não se quer, é tão fácil, porém é cómodo ter algumas certezas, mesmo que ínfimas, e quando todas parecem evaporar a desilusão inunda-nos. Primeiro a alma, depois o corpo e ficamos vazios. Sentimo-nos ocos porque isto é estranhamente libertador. NÃO CONSIGO ESCREVER MAIS.
Assim terminou a leitura de mais uma página. Até agora nada, pensou o inspector. Contudo, ele sentia-se doente com tais palavras, vítima da sua própria profissão, a compaixão não era seguramente o seu dom, mas decidido a trilhar os caminhos que o levaram a encontrar uma jovem de 19 anos jazida sobre a secretária, António Lopes prosseguiu sem interrupções a leitura.
Pequeno apontamento durante um dia mau, ou antes, menos bom. Se me determino permanecer na constante espera do esmorecimento das horas, estarei definitivamente condenada a perecer nesta demora? Poucos crêem mas um dia hei-de mudar este sistema idiota. Um dia. (...) Se calhar a questão é exactamente essa, o inferno dos vivos é puramente ilusório, e mesmo quando assim não se apresenta resta-nos a aceitação alienada ou simplesmente a compreensão para lhe dar espaço. São problemas de adaptação, problemas sérios que condicionam toda a actividade humana, problemas que nos oferecem um lugar no mundo, e possivelmente a solução seja criar um próprio lugar. Faltam-me pessoas. Adrenalina. Vida. Decerto terei sido eu a culpada da culpa ainda não entendida, a responsável pela solidão que me impede de falar, agir, viver. Pois estou exactamente nisto, na insistente sobrevivência, mas a solidão está a matar-me, ainda que não me apeteça ver ninguém. Todos os dias enfrento o mundo, os seres humanos que comigo se cruzam e aquele com quem convivo. Contudo, não lhes conheço os nomes, até ao ponto de lhes dissolver os rostos, mesmo que com eles esteja dia após dia. Não consigo pensar em nada, sentir nada. Nada, estou oca, é isso. Tristemente vazia.
Despiu-se da farda que envergava. Ao puxar de mais uma baforada de cachimbo, o Inspector Lopes sentiu-se condoído por toda aquela dor precoce, pelos devaneios de quem ainda nem tinha podido ver o mundo com olhos de ver mas somente com a falsa memória de o ter olhado. E nisto, desejei poder ressuscitá-la, apenas para lhe falar da sua casa de campo. Quem não compreendesse a casa de campo jamais poderia atribuir beleza e significado à natureza envolvente. Falar-lhe-ia dos riachos, dos pássaros, do prado verdejante, apenas com a intenção de lhe dar a conhecer uma vida fora da metrópole, uma existência que teimava também engoli-lo num só trago. Pensou na família da menina, nos pais e talvez irmãos... Teria ela família? Decerto sim. Não obstante, ela sentia-se só. Provavelmente nunca falara das atormentações a ninguém, os suspiros guardava-os para o bloco vermelho, e pouco a pouco ele começou a perceber. Determinado e paciente, António Lopes, agora sem farda, prolongou a leitura pela noite dentro:
O sofrimento é um período muito longo, isto na medida em que não o podemos fragmentar, pois interiormente, parece não registar qualquer passagem temporal apenas uma imensa duração. (...) Ela disse-me que tudo o que poderia existir já havia sido criado, que toda a tranformação resulta da adaptação. Mas como poderemos viver com tal percepção? Haverá algum sentido na pura vivência de não obter inovações? Impossível. Recuso-me a crer em tal ideia. Seria o fim dos dias. Seguramente. (...) Em conversas, pensamentos e registos dispersos apercebi-me de que a vida prática nada mais é que o persistente adormecimento da alma. O quotidiano tira-nos tudo: aquilo que nos distingue, aquilo que ansiamos em favor da alienada e descompensada existência humana. Mas não será a alma mais que o acto? O corpo mais que a roupa? O pensamento mais que a palavra?
Não em admira que aquela mulher tenha afirmado convictamente que "Quem não tem dinheiro não tem alma". Não me admira mas corrói-me. Corrói por saber que gastamos as intermináveis horas a labutar no sentido de o obter, que quando permanecemos na preguiça da procura a alma vicia-se no deleite e o hedonismo apodera-se do corpo, então ela passa a exigir o cumprimento de todos os prazeres carnais, tornando-os negociáveis e dependentes da moeda. Estarei também eu condenada a isto? Não é realmente um dilema, mas se não me deixo enganar pela falsa conquista
do dinheiro com que fico? Com uma alma inundada de tudo, com um sistema neurológico baralhado e debilmente só. Recordo-me que também o Pessoa sofrera estes males, que em revoltas com a tolice cognitiva se houvera apercebido que todos estes devaneios são o caminho da loucura. Mas é difícil escolher-se entre ser-se um ser social ou permanecer-se solitário, sem ninguém e sem nada. A questão é que não me parece haver escolha, esta crise nem se coloca. Na verdade não quero abdicar disto, desta dormência crónica que não me deixa dormir. Mas também não quero morrer só. Terei eu, tal como ele, o triste fim de viver resignada a uma garrafa de vinho barato e um reles cigarro? Por tudo isto não me vejo na velhice, não me vejo doente, cansada, estéril. Não me consigo imaginar na necessidade dos outros, na ajuda alheia, porque me habituei a isto do retiro. Talvez terminarei num asilo, e confundida com os dementes serei apenas mais um a quem a vida nada fez, possivelmente por ter estado ao algo dela. Preciso desesperadamente de sensações, mesmo que mínimas, mesmo que fugazes.
Mesmo com esta realidade pairando sobre a consciência não produzo, não produzo nada, vítima ou culpada do cansaço. Tenho que fazer valer alguma coisa e mesmo que nada valha, conforta-me a ideia de te ter feito. Outra das questões é esta ideia idiota da aprovação anónima, pois provavelmente tudo isto é fruto do reconhecimento nulo, se calhar tudo se deve à correspondência das expectativas. É completamente justa a ideia da vida quotidiana, porque não ter objectivos é como não viver, é existir por existir e consequentemente não se ser nada, nem mesmo os aforismos nos salvam. Enquanto se investe no trabalho, ou no ideal financeiro, acredita-se na procura de qualquer coisa, justifica-se a actividade, enquadra-nos no espírito mundano. Como queria não pensar, desejo arduamente desligar-me, tornar-me imbecil, fútil, oca. Para não penas nas predisposições e/ou consequências. Fazer porque sim sem denotar um lado contrário.
Assim sendo, vou fazendo notar-me pelas atormentações mentais, mas nem aí sinto a verdadeira entrega, em nenhuma delas. Não me concentro nem no trabalho nem nas horas póstumas, então esta seja a grande resolução de todas as palavras idiotas anteriormente escritas. Não há entrega em nada. Tal como a demora inconsciente dos anos que fingimos encobrir pelas rugas do rosto, assim são as queixas, autênticas farsas.
O relógio marcava 03.00h. O silêncio ensurdecedor da mobília descansada atordoou António. "Acaba aqui? Tudo se resume a isto?" - Questionou-se. Em revolta rasgou todas as páginas. Enlouquecido de dor, por ela mas sobretudo por ele, o Inspector vestiu o casaco e saiu pela madrugada. Em confronto com o rio, passou a pente fino toda a sua vida, os falsos jantares com os pais, a traição da ex-mulher, as encruzilhadas dos colegas de trabalho, e pior que tudo os sonhos reprimidos. Fazendo cumprir a tradição das gerações, alistou-se no exército e mais tarde frequentou a academia. Tornou-se um criminalista apurado, seguro. E em momento algum havia pensado na sua carreira. A satisfação do posto alcançado, as bênçãos da mãe e o consentimento da aldeia dissimularam-lhe o cérebro, até que nem mesmo ele, se viu a exercer outra coisa que não esta profissão. O cheiro da maresia avivou-lhe a memória, e recordou-se em menino, a brincar com barquinhos de papel perto do riacho. Sempre quisera ser marinheiro, mas os receios contidos da mãe, e os alarmes do Capitão Lopes levaram-no a trilhar outro caminho. Não que ele não gostasse do que fazia, mas no entanto, isto não o realizara. Por faltas de comparência, a mulher substituíra-o por um amante, e sem tempo para a vida familiar, os planos de ser pai foram sendo progressivamente adiados. Também ele estava só. Mas a exaustão do seu trabalho obrigava-o a dormir sem pensar na questão. Acometido pelo medo de permanecer só, e vítima das palavras que a rapariga deixara, António Lopes descalçou-se e entregou-se ao rio. Não se sabe ao certo se foi o seu fim ou se tudo não passou de um mero pesadelo.

Andreia Silva