sábado, fevereiro 27

Insónia

Diz-me o que queres ouvir e eu sussurrar-te-ei. Conta-me as façanhas dos conquistadores e leva-me a navegar pelas praias que não traçaste. Suga-me a valentia pelos lábios virgens da ingenuidade e eu prometo dar te o antídoto necessário à enfermidade dos dias.

Sim, eu sei, nunca quis ser nada. No recôndito da diminuta alma descobri o desejo de voar e agarrei-o. Algemei-o no meu peito com a crença de que seria, por ventura, distinta. Sempre o quis. Ansiei violentamente libertar as amarras do enclausuramento humano para me pintar de melodias escritas e sonetos de liberdade. Cobicei ser alguém na imensidão do sombrio espaço que enlaça e sufoca com as infortunadas recompensas que outorga. Foi como um sonho em que os limites indecifráveis pela transparência que encerram, em que o fim é inequivocadamente ilusório e a incalculável extensão humana é dada como a certeza da flecha que trespassa o coração. Ao longo de noites intermináveis enquadrei na moldura ideais revolucionários e sentenças implacáveis, e foi nisto que auto retratei imaculados dons.
Foram tantas as vezes que a linhagem dos que perduram nas prateleiras enfileiradas pareceu corresponder à minha estripe. Sobre tantos títulos adormeci consciente de que fazia fecundar o meu, eu que os desmenti provocatoriamente e que acabei por torná-los um vicio.

Sabes, imaginei-me dolentemente, gravemente, enlouquecida deste estro idilico e em repentinos acessos de loucura achei-me transformada nessa gente, e o mundo parecia pequeno. Não procures questionar estas adulteradas divagações. Na verdade, (como gosto desta expressão, na verdade) elas não existem, são meramente fantasiosas e colhidas das raízes maduras da imaginação. A compaixão abomina-me e as condolências alienadas dos curiosos itinerantes aterrorizam. Eu, que tantas vezes me achei só, sou desconhecedora da solidão, o ensurdecedor silêncio ainda permanece um enigma indecifrável. Sim, eu quis ser desses poetas apaixonados e incompreendidos que não se deixam acometer pelas palavras, genuinamente fugazes. Tornou-se possível tatuar esta maqueta padronizada que outrora chamaram mundo. A crença de que o revestiria levou-me a padecer das mazelas orgânicas e na balada nocturna confiei o meu ser, a capacidade de me libertar de tudo o que pudesse comprometer esta cerrada ambição converteu-se em fachada. Sou parte da humanidade e de uma certa forma isso entristece porque me faz recuar. Rasgaria a pele para não me fragilizar, de espírito limpo expurgaria as influências maliciosas e voaria. Não haveria recanto onde não pudesse estar nem presente que me prendesse. Somente ele, só o desconhecimento pelos lugares inóspitos me alimentaria a iludida alma. É vil a razão, puxa com a violência de um turbilhão endiabrado e não nos deixa partir. Talvez tenha sido eu quem usurpou a mascara para esconder o que temia, a banalidade é a defesa de quem ainda não se desfez da bagagem. Acreditei poder alcançar as infindas latitudes, que pensei respirar versos e fazê-los florir em poemas. É uma estranha idade, esta, a dos sonhos, em que os lírios cobrem os campos de luz e a vida corre sem contrariedades. É a ténue visão da efemeridade da juventude, a composição dos timbres festivos. Teria reunido as munições necessárias caso a cobardia infantil não inflamasse os olhos e por isto seria natural se nunca o desejasse ser.
Andreia Silva

sábado, fevereiro 20

Sentidos sem sentido

Pus-me a pensar, numa dessas tardes banais de Inverno, nos significados e sentidos das coisas. Vivemos num espaço de significados, muitas vezes, inconstantes, aos quais procuramos fervorosamente atribuir um sentido.
Somos um sentido, ou melhor, possuímos cinco que nos fazem fazer sentido num mundo que uma vez por outra o perde. A verdade, é que nos preocupamos com aquilo que faz sentido na nossa limitada concepção do universo, demoramos-nos a tentar perceber em que ponto as coisas se tornam incoerentes e num rodopio de procuras surgimos contraditorios.
Faremos sentido em determinados pontos ou somos um sentido em dimensão alargada? Eu não sei fazer sentido, não quero. Determinarmos lógicas faz de nós máquinas. Metódicas, repetitivas, constantes. Não quero sentidos mas vivências. Não procuro acolher coerências, dêem-me disparates, deixem-me olhar para o que não compreendo e procurar aprender.
Não faz sentido escrever aqui. Não faz sentido escrever este texto.
Mas se nada disto faz sentido então nada mais sou que cinco sentidos, não o diria se não fosse esta urgência sentida de escrever antes do sentido engolir esta premência e lhe retirar a sua caracteristica: a necessidade.