sábado, dezembro 27

Palavras

Palavras. São bonitas, ténues, duras, difíceis, definíveis, ritmadas. Esboçam o mundo dando lhe voz. Combinadas formam frases que se transformam em texto. Intemporais? Marcas de tudo e de todos. Ficam registadas, cravadas e guardadas. Permanecem em nós. São o que somos. Dão corda ao pensamento e alma à imaginação. Produzem atitudes, timbres, intenções, marcas, desejos. Mas nada mais são que conjuntos de letras ordenados. Definem, classificam, inscrevem. Eu sou feita de palavras. Mas não só. Elas não me pertencem da mesma forma que me compõe. Ditas ou por dizer? São sempre palavras. Então porque as perdemos nos momentos indecifráveis? Porque elas fogem. Fogem, pois também somos parte do que não conhecemos, do que não esperamos, aquilo que as palavras não alcançam, o mesmo que o toque e o olhar conseguem dar expressão à incapacidade das palavras. As palavras fascinam-me mas por vezes surgem fugazes, vazias, exíguas. Não há palavras. Mesmo quando o leque é tão variado, tão imenso. Por vezes pronunciadas a mais, por outras são sentidas como carências. Mas fica sempre tanto por dizer, e tanto se diz. E encontro mais no silêncio do que aquilo que poderia ser entendido nas palavras. O silêncio diz tudo ao mesmo tempo e por isso pode tornar-se incompreensível. São palavras mudas que significam e vozeiam caladas. É uma dualidade incapaz de satisfazer os prazeres de todos. Traiçoeiras, mentirosas, incapazes. Sim são sempre palavras. Opções. Pensadas ou impensadas. Todavia para além delas surgem as imagens, os gestos, as poses muito mais do que as palavras podem definir. Incompletas? Prefiro acreditar que sim. As palavras não me chegam.

quarta-feira, dezembro 17

Espera (título plagiado)

"Espera"
Botão! Serás corola e esperarás ser fruto...
Serás calor,- paixão! Lume que o peito inflama!
E há tanto que espero almejado minuto
De aquecer-me ao calor desta sagrada chama!

Génio, tu foste caos, negro pithecus bruto!
Réptil, tu foste larva! Hoje és luz! E eras lama!
Esperar! Esperar! O' divino tributo
D'alma de quem tem fé! Ilusão de quem ama!


Primavera, hás de ter o tempo das vindimas:
Eu espero por ti, dia e noite, quimera!
-Eva, termo de tudo e termo destas rimas...
Jamais chegue porém, a que em meu estro impera,
E que sempre esperando, o' minha lira, exprimas
O desejo de quem esperou e inda espera!

Jorge Lima

Espera. Uma longa e interminável espera. Uma demora inconsciente e tão distante que se torna num acto utópico capaz de fazer deslizar na mente mais que um simples sentimento. Essa espera tão esperada e ao mesmo tempo nunca pensada. É como se fizesse um exame de instrospecção e compreendesse que muito para além da espera há o que não se aguarda, e possivelmente seja isso que torna esta espera tão inconstante. Não pensar nisto provoca vergonha, porque esperamos muito mais do que possamos imaginar, esperamos interminávelmente, necessitamos de demorarmo-nos. Se não esperassemos então nunca dariamos o real valor do que surge; e no entanto, pensar nisto desperta uma especie de curiosidade amedrontada. Mas o que esperamos nós? Cada espera tem um sentido, mas a demora que não se adivinha tem outro sabor. Então o que insconcientemente espero nem eu consigo ansiar, e talvez esperemos algo que acreditamos ser o certo mas nem sempre sabemos qual é realmente a nossa espectativa. Desaprendi a esperar ou talvez nunca o tenha sabido verdadeiramente. Não se trata de ânsias ou desejos, espera-se simplesmente. Mas o acto da demora é muito mais que a passagem do tempo ou uma perturbação, é a surpresa do que chega depois da espera.

(talvez houvesse muito mais a ser escrito, mas fico em espera. Dedicado a um ser que ainda espera e portanto vive)

terça-feira, dezembro 2

Existências

Era estranho. Era estranho o homem que passeava na carruagem do comboio de cores mortas. Nada evidenciava a sua idade, não fosse o seu nariz adunco a adivinhar os anos pesados dos seus olhos. Era estranho. O homem que me olhava desconfiado, do outro lado da carruagem, tinha a boca retorcida e o cabelo desalinhado. Tmbém eu o olhava. Olhava-o por fora tentando adivinha-lo por dentro. Porque me olhava assim? Ele era apenas um velho indivíduo que desconfiava por meio do olhar e sorria pelos gestos. Tinha tiques. Lia o velho jornal de maneira descontrolada, como se visse tudo e não percebesse nada. Um estado de iliteracia. Talvez eu sentisse medo, mas a curiosidade de vasculhar os seus pensamentos e receios fizeram me fixar o olhar no pobre homem. Era imoral, sim. Era imoral tentar olhar aquele homem por dentro, compreender o que ele sentia ao ler o jornal, o que pensava enquanto via as paredes a correr fora da janela do comboio. Queria conhecê-lo, saber mais acerca das suas recordações, perceber o que restou e o que se evaporou da sua memoria. Não era uma fixação, era apenas a curiosidade de conhecer o que existe. Não havia nada a mais nele que no homem ao meu lado, havia apenas ele. Tomei-o por certo, pensei determinar a sua consciência num acto presunçoso de adivinhação, mas quando o contraste do olhar e dos pensamentos se torna demasiado vago e enublado nada se compreende. Enquanto o adivinhava tentava ver-me e nada aconteceu. Não o perscrutei e não me reconheci. A existência é algo insondável, corresponde à prisão da alma pelo corpo, e do corpo pela vida. Então o significado de o olhar em mais nada resultou senão em fadiga. Pois o que ele era ali poderia não sê-lo noutro lugar, a consistência torna-se inconstante, e o que ele parecia teimar em esconder era exactamente a verdade dele mesmo. Porque somos o que não queremos, e quando o queremos ser a veracidade das nossas palavras desmorona-se diante de nós, e tudo deixa de ser o que é. Somos seres inconstantes, irreflectidos e imperfeitos. Então escolhemos pessoas e crenças, as mesmas que nos façam acreditar no que pensamos ser. Mas o que somos? E o que está acima de nós? É um pensamento inconsciente, insensível. Nada do que poderia ver naquele homem me poderia esclarecer. Somos feitos para as necessidades que criamos. Eu sei que ele existe mas não vejo o que nele não existe. É complicado, é complicado tentar ver o que não existe. Então procuro o que não sei, porque o que sei já não me basta. Então concluo ao ver os movimentos da personagem que crio em torno do estranho homem, que ele é apenas mais um entre tantos, e o único dentro da sua própria existência. E nunca chegamos a ser nada. Somos apenas matéria e isso parece justificar a nossa existência. Provavelmente ele tem uma missão, uma missão que nunca chegará a saber qual é, e no final da sua vida não saberá para o qual foi concebido. A minha piedade e compaixão com aquele homem é impura, é irracional porque sou tão incompleta quanto ele, e nada faz de mim analista do seu interior. Então fecho os olhos e olho pela janela. Eu não sou nada.